Denomina-se actio libera in causa a ação de quem usa deliberadamente um meio para se colocar em estado de incapacidade física ou mental, parcial ou plena, no momento da ocorrência do fato delituoso. Também se funda na ação de quem, apesar de não ter a intenção de praticar o delito, podia prever que tal meio o levaria a cometê-lo. Neste caso, pode ser entendido também como dolo eventual.
Quando se fala em actio libera in causa por culpa ou dolo eventual, refere-se sempre ao resultado criminoso: há dolo eventual quando o agente, tendo previsto o resultado, prossegue em suas ações, assumindo o risco de vir a produzi-lo, e culpa quando devendo prevê-lo, não o fez, ou acreditou verdadeiramente que o resultado não se concretizaria.
Noutras palavras, é se deixar ficar em um estado de inconsciência, com o intuito da prática delitiva.
Franz von Liszt, sumidade no assunto, em seu Tratado de Direito Penal assim discorre sobre a teoria em voga: "Tais ações se dão quando o agente, em estado de não-imputabilidade, produz um resultado por comissão ou omissão, mas a este seu procedimento deu causa uma ação (ou omissão) dolosa ou culposa praticada em estado de imputabilidade”
A teoria da actio libera in causa foi adotada na Exposição de Motivos original do Código Penal de 1940, de modo que se considera imputável aquele que se põe em estado de inconsciência ou de incapacidade de autocontrole propositadamente, seja dolosa ou culposamente, e nessa situação comete o crime.
Ao adotar tal orientação, o Código Penal adotou a doutrina da responsabilidade objetiva, pela qual deve o agente responder pelo crime. Portanto, essa teoria leva em conta os aspectos meramente objetivos do delito, sem considerar o lado subjetivo deste. Considera-se a responsabilidade penal objetiva a culpabilidade do agente apenas por ter causado o resultado.
Nesse ponto, vê-se que a teoria da actio libera in causa se põe conflitante ao primado do Direito Repressivo da ação ou omissão humana para a aplicação da repressão à conduta perpetrada, observando que, desde sempre, haverá presunção de culpabilidade do ato delituoso.
Frente ao princípio constitucional do estado de inocência e à teoria finalista adotada pelo Código Penal, é inadmissível a responsabilidade penal objetiva, salvo nos casos da actio libera in causa. É que para a teoria finalista, não se pode dissociar a ação da vontade do agente, já que a conduta é precedida de um raciocínio que o leva a realizá-la ou não. O dolo e a culpa fazem parte da conduta, que é comportamento humano, voluntário e consciente, dirigido a uma finalidade.
Com a reforma da Parte Geral do CP, introduzida pela Lei 7.209, de 11.7.1984, apregoou-se a abolição de quaisquer resíduos de responsabilidade objetiva, mas o fato é que alguns destes ainda remanescem na legislação penal, como ocorre nos casos de embriaguez culposa ou voluntária completa, exemplificando.
Ainda que fora quase que extirpada a responsabilidade objetiva pela alteração legislativa de 1984, certo ponto do atual Código Penal ainda remanesce o principio de que a “causa da causa também é causa do que foi causado”, que o Prof. Guilherme Nucci indica como consideração sobre a subjetividade do ato, pela ocorrência de fato pretérito ao do cometimento do crime, ou seja, imputando-o doloso ou culposo, sem contudo analisar o fato em si.
A doutrina, de modo geral, costuma situar as origens da teoria da actio libera in causa nas proposições de Aristóteles. Após, na Idade Média, o Direito canônico aplicava a doutrina de Santo Agostinho, que entendia que a embriaguez era o único ato voluntário cometido nessa cadeia de acontecimentos, e constituía, em si mesmo, a causa final da conduta delitiva. No período dos jurisconsultos italianos se elaborou a formulação que conhecemos hoje em dia. A doutrina até hoje não é unânime na hora de definir o significado e tratamento que a actio libera in causa recebeu em suas primeiras formulações.
Já na parte prática da teoria, para alguns autores, a actio libera in causa só se relaciona com as condutas em que o sujeito se põe deliberadamente em estado de inimputabilidade com o propósito de cometer um delito (intoxicação pré-ordenada)[1]. Esse ato pretérito ordenado, de fato se vê como agravante do ilícito, ou seja, vê-se que o agente tenta o estado de inimputabilidade para a justificação ou até o ânimo para o cometimento do ato.
Não poucos outros doutrinadores aplicam a teoria da actio libera in causa a todas as condutas cometidas pelo sujeito que se intoxica dolosa ou culposamente, independentemente de existir uma prévia intenção direcionada à prática delitiva. Nesse ponto há grande restrição da doutrina moderna, pois se volta para a afronta direta ao primado da presunção de inocência.
Nestes casos, se atribui responsabilidade penal pelo fato cometido em estado de inconsciência, atendendo à livre escolha que o sujeito teve ao intoxicar-se ou embriagar-se. Assim também opinava Mezger, o qual, mesmo tendo apontado a necessidade de coincidência entre a imputabilidade e o tempo da execução da ação, entendia que isto não impede "el castigo de las llamadas actiones liberae in causa. Por tales han de entenderse aquellas acciones en las que el sujeto establece la causa decisiva en un momento en que es imputable, mientras que, en cambio, su conducta corporal sólo de desenvuelve en un tiempo en que su imputabilidad está ausente."
Em sentido contrário, adotando una postura restritiva do conceito, opina Cezar Bitencourt:
"A actio libera in causa, fundamenta a punibilidade de ações praticadas em estado de embriaguez não acidental. No entanto não abrange aquelas situações em que o agente quer ou imprudentemente se embriaga sem prever ou poder prever a ocorrência de um fato delituoso. Nelas o que é livre na causa não é a ação criminosa, mas somente a embriaguez. Poderá o agente praticar um ilícito penal em estado de embriaguez, que era absolutamente imprevisível, no momento ou antes da embriaguez. E quando há imprevisibilidade não se pode falar em actio libera in causa, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao Direito."
Há autores que fazem restrições à extensão da aplicabilidade da teoria da actio libera in causa, sem negar sua aplicação.
Mirabete diz que "Na lei brasileira, porém, não se exclui a imputabilidade pela embriaguez não preordenada, se voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos."
Ou seja, o legislador brasileiro adota um conceito amplo que, para o autor referido, constitui uma "forçada aplicação do princípio da actio libera in causa. O perfil da construção legislativa brasileira a respeito do tema, tem sua origem nas idéias de Nélson Hungria , para quem mesmo nos supostos de embriaguez voluntária ou culposa, responderá o sujeito segundo o elemento subjetivo do delito cometido, em razão da existência de uma vontade residual que dirige a atividade ilícita. Entende que a embriaguez não elimina completamente o discernimento e portanto, deve ser reconhecida a responsabilidade penal de acordo com o elemento subjetivo próprio do delito praticado.
Para alguns doutrinadores, a aplicação dessa teoria constitui resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal e pode ser admitida excepcionalmente quando for de todo necessário para não deixar o bem jurídico sem proteção.
Para outros penalistas, o Código Penal Brasileiro, quando determinava a aplicação da actio libera in causa, sem dúvida nenhuma admitia a responsabilidade penal objetiva.
A situação alterou-se com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 5º, LVII , introduziu o princípio do estado de inocência, não mais se permitindo a interpretação da legislação penal substantiva com a presença da responsabilidade penal objetiva, o que leva-se a concluir pela inaplicabilidade da teoria acima citada.
O posicionamento de Fernando Capez acredita-se fundar correto quando afirma que "ainda existem casos em que se mantêm resquícios de responsabilidade objetiva em nosso sistema penal, quando imprescindível para a proteção do bem jurídico". A actio libera in causa é um desses casos.
Neste caso, é expresso o dolo do agente em relação ao ato criminoso, configurando a mudança de estado de consciência o primeiro elo na cadeia de eventos que conduz ao resultado antijurídico, ainda que meramente preparatório.
A actio libera in causa dolosa vem a ser precisamente a embriaguez preordenada, em que o sujeito busca a intoxicação, repetimos, com o fim de cometer o delito premeditado; a vontade delituosa está mais que caracterizada.
Nesse ponto vê-se a importância da teoria para o Direito Penal brasileiro, pois, a fim de que o agente não fique imune à ação punitiva estatal e o bem jurídico sem tutela, como por exemplo, na embriaguez não acidental leva-se em conta, exclusivamente, o momento em que o sujeito escolheu livremente entre consumir ou não a substância.
Tal teoria não apresenta problema nenhum ao ser aplicada nos casos de embriaguez preordenada, na qual o sujeito embriaga-se propositadamente para pôr-se em estado de inimputabilidade, a fim de cometer o crime.
Já aos casos de embriaguez completa, voluntária ou culposa, e não preordenada, nas quais o sujeito altera propositadamente seu estado de consciência, ou porque chegou àquele estado em razão de sua imprudência quando da ingestão do líquido, e chega a delinquir não porque possui o animus específico, mas porque estava privado da sua capacidade de querer e de autodeterminação, é certo afirmar que a teoria acima citada encontrará dificuldades quando da sua aplicação.
Isso, como já dito acima, observa-se pelo fato da presunção de não culpabilidade esculpido no protecionista artigo 5º da Constituição da República.
São nesses casos que o alargamento da aplicação da actio libera in causa é criticado, pois como lembra Aníbal Bruno, será sempre necessário que o elemento subjetivo do agente, que o prende ao resultado, esteja presente na fase de imputabilidade.
Ressalte-se que o elemento volitivo do indivíduo em relação à alteração de estado de consciência não é repassado à vontade voltada ao iter criminis: o fato do agente ter, conscientemente, querido alterar o estado de consciência, não se traduz em vontade de delinqüir. Em monografia ainda hoje insuperada, Narcélio de Queirós explica, acerca das actiones liberae in causa: "É a própria ação punível que deve ser livre na sua causa, deliberada ou previsível no momento da imputabilidade, não simplesmente a embriaguez"
Portanto, ante ao descrito, observa-se a teoria da actio libera in causa uma forma de o punir os desregrados contumazes que alteram seu estado de consciência para a praticar atos delituosos, tentando esquivar-se da punibilidade pela subjetividade da conduta.
Observa-se uma forma de não deixar que as pessoas que, eventualmente alterem seu estado de consciência por caso fortuito e as outras hipóteses do artigo 28 do Código Penal brasileiro, sejam apenadas da mesma forma que àqueles que propositadamente assim o procedem no sentido da escusa de punibilidade.
BIBLIOGRAFIA
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BRUNO, Aníbal. Direito Penal, volume I, tomo II, 3 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1967, p. 317
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1.
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal, parte geral, 3 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 470
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JESUS, Damásio E. de, Direito Penal, volume I, parte geral, 22 ed. São Paulo, Saraiva, 1999, p. 756
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, volume II, 1965, p. 178-189
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal, volume I, 10 ed. São Paulo, Atlas, 1996, p. 454
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 4 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 193-195
QUEIRÓS, Narcélio de. Teoria da "actio libera in causa". 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1963.
FONTE: www.tezaniadvocacia.com.br/site/artigos/a-importancia-da-teoria-da-actio-libera-in-causa-para-o-direito-penal
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